Convenção 169 da OIT: nenhum direito a menos

Nesta última terça-feira, dia 3 de junho, a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, da Câmara dos Deputados, realizou Audiência Pública para debater a possibilidade de revogar subscrição do Brasil a um importante tratado internacional de defesa e proteção dos direitos humanos dos povos indígenas e dos chamados "povos tribais": a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A Convenção foi adotada no âmbito da OIT em 1989 e entrou em vigor, em nível internacional, em 1991. O Brasil ratificou a Convenção em 2002, e em 2004 ela foi promulgada por meio do Decreto Presidencial 5.051. Completados 10 anos de sua promulgação, observa-se uma ampla utilização deste tratado internacional nas discussões e nas ações judiciais em defesa dos direitos dos povos indígenas e também de outros segmentos, como as comunidades quilombolas, comunidades ribeirinhas, povos romani (ciganos) e outras comunidades tradicionais.


O requerimento para realização da Audiência Pública foi feito pelo Deputado Paulo César Quartieiro e foram convidados a participar da Audiência, na qualidade de palestrantes:
- Ministro Alexandre Peña Ghisleni - Diretor do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais - Ministério das Relações Exteriores
- Coronel Rodrigo Martins Prates - Assessor da Seção de Políticas Setoriais da Subchefia de Política e Estratégia do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas - Ministério da Defesa
- Luciano Mariz Maia - Subprocurador-Geral da República - Ministério Público Federal
- Edward Mantonelli Luiz - Antropólogo
- General Maynard Marques de Santa Rosa - Oficial da Reserva das Forças Armadas
- Lorenzo Carrasco - Jornalista e Escritor

Nós da AMSK/Brasil tivemos a oportunidade de acompanhar a Audiência. Fizemos parte da platéia, composta basicamente pelos parlamentares que compõem a Comissão de Agricultura, seus assessores e assessoras, e algumas poucas organizações da sociedade civil e pesquisadores/as do tema. Já de início nos chamou a atenção a ausência das lideranças dos povos e comunidades protegidos pela Convenção. Nos perguntamos: onde estão as lideranças indígenas e quilombolas, que têm participado ativamente das discussões com o Governo Federal sobre a a regulamentação da consulta prévia, um dos direitos garantidos pela Convenção 169? Onde estão as representações das comunidades ribeirinhas, de pescadores artesanais, e das comunidades tradicionais de matriz africana que vêm lutando arduamente e pela manutenção de seu modo de vida, de suas tradições, de seus territórios, de seu conhecimento, e que também são, reconhecidamente, sujeitos da Convenção 169? E as demais lideranças ciganas de nosso país, para as quais a Convenção 169 tem sido um instrumento importante para colocar em pauta a discussão sobre a garantia do direito à educação e à saúde, bem como da inviolabilidade de suas tendas - tema fundamental para as comunidades ciganas acampadas?

Estas lideranças não foram convidadas pela Comissão de Agricultura para participarem da mesa da Audiência e para exporem seus pontos de vista sobre o papel deste tratado internacional na proteção de seus direitos, e esta exclusão é reveladora da forma como os debates foram conduzidos. Defendemos fortemente, como parte central de nossa atuação institucional, o estabelecimento de espaços de diálogo e de debate de ideias, e sabemos que, em muitos momentos, podem surgir posicionamentos conflitivos e antagônicos. Contudo, o que assistimos foi o estabelecimento de um espaço no qual o debate construtivo, voltado ao interesse público e feito de boa-fé era absolutamente inviável. Inviável pois, de antemão, elementos que marcam a realidade atual dos povos indígenas, dos povos ciganos, das comunidades quilombolas e das demais comunidades tradicionais que são parte integrante do povo brasileiro e sujeito da Convenção 169 da OIT foram retirados da arena de discussão. O histórico de constituição dos movimentos sociais, o papel deste movimentos na construção da democracia no Brasil, os impactos inegáveis do racismo e da discriminação étnica e racial na estruturação da sociedade brasileira, a lista infindável de violações de direitos humanos que afetam estes povos e comunidades foram desconsiderados, e sua atuação, deslegitimada. Assistimos, estarrecidas, ao resurgimento de argumentos há muito desconstruídos, a partir de um debate político e científico intenso sobre o tema do racismo no Brasil, envolvendo movimentos sociais, pesquisadores e pesquisadoras. Um debate que tem propiciado a formulação de um conjunto amplo de políticas públicas e estruturas institucionais de enfrentamento ao racismo e promoção da igualdade racial e étnica, e que tem gerado uma considerável base de conhecimento na forma de artigos, dissertações de mestrado e teses de doutorado em diferentes áreas. Apesar de todos estes avanços, os discursos contrários à Convenção 169 da OIT foram uma tentativa de total desqualificação deste debate, sob o argumento de que "etnicizar" as discussões políticas no Brasil significa atentar contra a soberania e a unidade nacional, criar barreiras ao pleno desenvolvimento, promover retrocesso em nosso processo civilizatório e atender a interesses escusos de grupos internacionais... Tudo isso em defesa do pleno desenvolvimento e dos verdadeiros interesses do povo brasileiro. Cabe perguntar: que desenvolvimento? que interesses? e a que "povo brasileiro"estes discursos se referem...

O debate sobre o conteúdo da Convenção 169, os direitos que ela garante e seu conflito ou não com o ordenamento jurídico brasileiro foi feito de forma clara, técnica e precisa pelas representações do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério da Defesa e do Ministério Público Federal - a quem agradecemos publicamente pelo posicionamento adotado em defesa dos princípios deste tratado internacional e de sua manutenção como parte de nosso ordenamento jurídico. Ressaltamos a observação feita pelo Sub- Procurador Geral da República, Luciano Mariz Maia de que, estando a Convenção 169 da OIT em vigor no Brasil, o princípio de consulta prévia aos grupos aos quais ela se aplica deveria ter sido observado, inclusive na definição dos convidados da Comissão de Agricultura para se pronunciarem a respeito de sua possível revogação. Ressaltamos também a observação feita pelo Coronel Rodrigo Martins Prates, que afirmou a importância e a necessidade de voltarmos ao texto da Convenção e compreendermos seu real conteúdo pois, para o Ministério da Defesa, seus princípios não entram em choque, em nenhum momento, com o princípio da soberania nacional. Por fim, ao ser questionado sobre os procedimentos de denúncia e revogação da Convenção 169 da OIT, o Ministro Alexandre Peña Ghisleni, representante do Ministério das Relações Exteriores esclareceu que, de acordo com as regras da OIT, os prazos para denúncia se abrem de 10 em 10 anos a partir da entrada da Convenção em vigor, em âmbito internacional. Lembramos: a Convenção 169 da OIT entrou em vigor em âmbito internacional em 1991. Já fechamos dois ciclos de 10 anos. Isso significa que um possível pedido de revogação da Convenção apenas poderá ocorrer a partir de 2023.

Para nós da AMSK/Brasil a Convenção 169 da OIT traz uma contribuição fundamental aos povos indígenas, aos povos ciganos, às comunidades quilombolas e às demais comunidades tradicionais ao colocá-las no centro das discussões sobre o desenvolvimento e sobre a elaboração de políticas e ações nas mais diferentes áreas. Este é um movimento que gera conflitos, obviamente. Porém, o conflito não é, em si, um problema. Ao contrário. Em momentos nos quais grupos excluídos e violados em seus direitos humanos fundamentais ingressam na arena política para demandarem a efetiva observância de seus direitos, este movimento abala estruturas de poder há muito consolidadas. O debate será tenso e acirrado, pois se trata de uma redistribuição de poder - uma redistribuição que os grupos que o detêm estão muito pouco dispostos a fazer. O conflito ocorrerá, inevitavelmente, para que novas estruturas sejam estabelecidas, tendo como base uma maior equidade, uma maior justiça social.

AMSK/Brasil

Para maiores informações:
- Requerimento para realização da Audiência: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=2A9FA9C4210E449A8B84BD9CB5F699A0.proposicoesWeb2?codteor=1247423&filename=REQ+577/2014+CAPADR
- Programação da Audiência: http://www.camara.gov.br/internet/ordemdodia/integras/1255329.htm
- Para assistir a Audiência na íntegra: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/capadr/videoArquivo?codSessao=48432&codReuniao=36371#videoTitulo