Uma coragem necessária no atual momento conjuntural.



À época da sua aprovação, a Lei n.º 12.847/2013, que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), foi celebrada como um marco no enfrentamento à violência do Estado, e um avanço significativo na luta pela abolição dessa prática abjeta, historicamente enraizada em nossa sociedade.
A legislação em questão, derivada de obrigações internacionais assumidas pelo país, apenas foi aprovada após intensa pressão de organizações da sociedade civil, entre elas a Pastoral Carcerária Nacional, apesar das deficiências e problemas no texto apresentado, que pensou-se poderiam ser superadas ou mitigadas na prática.
Porém, diante da experiência concreta de trabalho no Comitê, e analisando criticamente (e de forma autocrítica) o caminho percorrido, é forçoso reconhecer que longe de ser um avanço, a Lei n.º 12.847/2013, assinada pela Presidenta Dilma Rousseff, colocou uma pedra sobre a realização efetiva do Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, fechou a janela de discussão sobre o tema no plano legislativo, e sinalizou aos demais estados da federação, em termos extremamente rebaixados, como deveriam ser constituídos os Comitês e Mecanismos locais.
O que deveria ser um sistema baseado na absoluta autonomia dos seus elementos, e preponderância da sociedade civil na condução dos trabalhos, eis que o Estado brasileiro era e continua sendo o maior dos torturadores, transformou-se em mais um aparelho burocrático, sob permanente tutela governamental.
O controle presidencial previsto em lei sobre as indicações para o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura revelou-se desastroso, e o obscuro primeiro processo de seleção de membros, realizado de forma arbitrária e sem critérios claros, apesar de ter contemplado a Pastoral Carcerária Nacional, resultou em uma composição cuja representatividade e legitimidade foi com toda razão questionada.
O afastamento dos movimentos populares e das diversas organizações que atuam na linha de frente da luta contra a tortura e outras formas de violência estatal refletiu-se diretamente no atual processo eleitoral para a renovação dos membros do Comitê. Passados quase três anos de existência e dois anos de trabalho, apenas 13 organizações EM TODO PAÍS se habilitaram para pleitear um assento no colegiado, sendo que dessas, 9 já fazem parte do Comitê.
A presidência permanente do Comitê pelo Governo, que atualmente também exerce a vice-presidência, a confusão de papéis com outros órgãos governamentais, e a total falta de estrutura de trabalho, incompatível com um colegiado que possui 16 atribuições legais, muitas delas complexas, como a construção de um banco de dados sobre tortura, e o acompanhamento e avaliação de termos de cooperação internacional, programas, ações e projetos de lei, resultou em um trabalho desorientado, sem qualquer impacto ou relevância no cotidiano daqueles que historicamente são os alvos da tortura no Brasil.
Planejamentos irreais, dificuldades básicas até para publicar recomendações no diário oficial, implementação deficiente de mecanismos básicos de transparência, ausência de uma política de comunicação oficial, demoras injustificadas para a análise de documentos, obstáculos jurídicos insólitos, escassez de recursos humanos, e os vetos às manifestações contrárias aos interesses governamentais, entre outros tantos problemas, deixaram clara a falta de qualquer compromisso com uma política federal minimamente relevante de prevenção e combate à tortura, e transformaram a participação no colegiado em um exercício desgastante de embates estéreis.
O desmonte da pouca estrutura de trabalho, iniciado pelo Governo Dilma e concluído pelo Governo Temer, com o corte do único cargo de coordenação que dispunha o Comitê, eliminou qualquer esperança que poderia existir de melhora gradual na qualidade de atuação do órgão, cada vez mais submetido e incorporado à estrutura do governo.
Além disso, a participação de servidores comissionados do próprio Governo Federal na seleção de peritos do MNCPT, organizada pelo Comitê, também se mostrou um equívoco ético e político, que gerou desconfiança e afastamento do processo de escolha. No mesmo sentido caminha a intromissão governamental na escolha do coordenador do Mecanismo, conforme previsto ilegalmente no §4º, art. 10, do Decreto n.º 8.154/2013, ao arrepio da própria Lei n.º 12.847/2013, e que tristemente contou com o apoio da sociedade civil representada no colegiado.
Idealizado como um instrumento inovador, o Comitê rapidamente caiu na vala comum das políticas fictícias de “participação popular” na administração pública, que nos últimos anos deu luz a um cem número de conselhos, colegiados e conferências, que continuamente reduzidos em escopo, poder decisório, autonomia, prerrogativas de atuação e estrutura de trabalho, tornaram-se pouco mais do que palcos de disputas de vaidades e discursos inflamados, onde os mesmos atores parecem se revezar (ou sequer se revezam) no exercício de um pequeno poder, com pouco ou nenhum significado para a luta concreta dos excluídos.
Cumpriremos até o último dia o mandato que assumimos publicamente, mas não emprestaremos mais legitimidade para um Comitê descaracterizado e apropriado por governos sem qualquer compromisso real com a prevenção e o combate à tortura, e sem qualquer interesse de impor freios à barbárie desencadeada todos os dias pelas forças repressivas do Estado.
Mais do que nunca, entendemos que o combate à tortura precisa estar vinculado a construção concreta de uma força social antipunitivista, e a um horizonte de desencarceramento e desmilitarização, uma vez que as sucessivas “inovações” institucionais voltados ao monitoramento dos espaços de privação de liberdade tem demonstrado seus claros limites.
Continuaremos atentos, fiscalizando e colaborando com as atividades do Comitê e do Mecanismo sempre que entendermos haver espaço para algum avanço, mas certos de que a melhor contribuição que podemos dar na atual conjuntura é estar junto com o povo preso, seus familiares e os milhares de agentes da Pastoral Carcerária espalhados pelo Brasil.
Seguimos na luta por um mundo sem cárceres!
São Paulo, 06 de julho de 2016.
Pastoral Carcerária Nacional – CNBB


--
Paulo Malvezzi
Assessor Jurídico da Pastoral Carcerária Nacional